2006/12/04

- Mon Senhor, com licença, as fotografias já chegaram

Dom Jerónimo num imperceptível movimento de cabeça ordenou ao jovem noviço que saísse, o que este fez depois de deixar em cima da secretaria duas fotografias retratando um jovem casal a passear à beira rio.

-O cerco aperta-se Dom Teodoro

Sentado na poltrona de costas altas junto da lareira Dom Teodoro Antigo patriarca de Lisboa relia um velho e gasto livro de horas.

- Sim meu caríssimo discípulo e a pedra ficará onde sempre esteve, para glória d'Ele e nossa salvação. Deixa-me ver essas fotografias, é jovem e nunca pensei que fosse tão bonita, quase me faz pena que tenhamos de o fazer.
- Então, está a amolecer, um homem da sua idade?
- Tu não percebes, antes de ser quem sou, sou também um ser humano.
- Meu caro, custa-me a acreditar que alguma vez tenha sido humano.
- Os gémeos estão a fazer um bom trabalho.
- Sim, quase 50 anos a fazerem-se passar por atrasados mentais, em nome do pai.
- Como te atreves, lembra-te Jerónimo, eu ainda não estou acabado, e tu ainda tens muito que aprender. Quando é que partes para Tomar?
- Hoje mesmo.

No Domingo de manhã Helena acordou com o chilrear do pássaros. Os pais de Tó possuíam uma pequena casa na rua de Leiria com uma vista soberba sob o Convento.

- Bom dia minha rainha.
- Tó sabes bem que não gosto dessas coisas, e muito bom dia para ti também, estou cá com uma desatas fomes...
- Pois espero bem que tenhas mesmo muito, porque os pequenos almoços da dona Trindade são de rebentar.
- Sim isso vê-se, basta olhar para o filho.
- Minha malvada, já vais ver...
- Agora a sério, achas que podêmos passar por Almorol antes de ir-mos para Lisboa?
- Não posso! Agora és tu que acreditas?
- Não sejas parvo, estou só com curiosidade. Alias nunca visitei Almorol e és tu que dizes que é lindo e romântico e bucólico e mais não sei o quê.
- Ok, vamos então enfrentar a mesa da D. Trindade e depois vamos a Almorol.

Enquanto desciam ao rés do chão Helena não podia deixar de pensar na reviravolta de toda esta história.

- A que hogas chega o pai?
- Não disse, disse apenas que contássemos com eue para o jantar. Ainda tens aqueuas sementes?
- Sim, escondi-as na scgistia.
- Aqueue parvauão do Toninho nem sabe o que os pera. Quando o pai chegar já sabes, vais buscar as sementes e segues para Tomar, eu trato do resto.
- Sim, sei muito bem o que tenho a fazeg não sou pagvo.

2006/11/09

-Tudo bem, mas devo lembrar-te que o maior lago artificial de Portugal não é Castelo de Bode, é o Alqueva.

Ripostou Helena

- E quanto a essas tretas todas de imortalidade e reencarnação, já sabes que não acredito em nada disso. Ok, existem aqui uma série de coincidências e factos estranhos que não consigo explicar, mas não tem de ser forçosamente paranormais ou místicos, são coincidências, nada mais do que coincidências. Tal como esta duas arvores mortas serem exactamente iguais...

- Estas arvores tem muito mais a dizer do que aquilo que tu pensas. Porque a propósito de arvores existe um episódio que te quero contar.

Foi protagonista dele o infante D. Duarte, irmão do duque de Bragança e futuro D. João IV. Cita-o uma crónica conventual da responsabilidade de Frei Bernardo da Costa.

[...] No ínfimo desta fabrica [Janela da Sala do Capitulo] está uma estátua [...]. A estátua querem dizer que é representação da Real Casa de Bragança. Sucedeu quando veio tomar o hábito [...] o Infante D. Duarte ao passar pelo sítio desta Janela e demorando-se a vê-la um dos freires que o cortejavam lhe disse como intrometido e com pouca reflexão o pensamento que dissemos da ideia que se faz daquela fábrica. Se é assim, senhor, muito seco está aquele tronco para as esperanças pelo que representa, ao que logo respondeu o Senhor D. Duarte; Não está tão seco que não possa reverdecer e brotar com mais força. Sendo precisamente a Força, com os seus quatro atributos – magnificência, confiança, paciência e perseverança –, uma das acepções do termo latino para Carvalho, espécie vegetal sob cuja copa Abraão levantou o seu Tabernáculo e a Arca da Aliança repousou, torna-se cristalino o motivo da sua eleição para substante do jardim simbólico ali plantado, onde abundam o coral (Corallium rubrum, ou Isis nobilis), árvore Seca marinha consabidamente detentora de propriedades profilácticas e mágicas, e a alcachofra, inflorescência do cardo (Cardum coeli, ou Cardus beneductus, o cardo-santo), a qual é sujeita ao fogo pelo S. João para, no caso de reverdecer, assinalar o cumprimento do anelo de exaltação intima.

Esse jardim simbólico corresponde à representação visual-esquemática do mistério das manifestações do Supremo, tal como a Kabbalah – tanto a judaica como a cristã, tão cultivada na época – o concebe.
Segundo ela, e em traços largos, é através da árvore dos Sefirot, qual Tronco de Jessé, que a natureza divina enviada ao Mundo adquire a sua vertebração.

São três as colunas da árvore dos Sefirot, neste exemplo também elas próprias árvores. Se as laterais, ditas de Misericórdia e de Rigor, tendem a manifestar a intersecção da História Sagrada com a Historia Nacional que os Reis de Portugal, quais émulos dos de Israel, encarnam, a coluna central ou mediana é a via da Glória do Eterno, o Ein-Sof, ou Encoberto ... Nela coincidem, como pólos teofânicos, alfa e ómega, o princípio e o fim, a primeira e a última das dez Sefiras: Kether (a Coroa) e Malkuth, (o Reino).
Assim acontece, com efeito, em Tomar. Ao centro, no topo, avista-se Kether Elyon, a Coroa Suprema de Deus, enquanto na base, sob a Janela, o grupo escultórico constituído pela árvore Seca evoca o Reino de Deus, simbolizado pelo seu representante terrestre.
Sobrepondo-se a Malkuth, a nona Sefira, Iesod, (o Fundamento), é claramente assimilável à Janela do Capítulo, a Assembleia das Cabeças (Caput) dos Perfeitos e Justos, obreiros do Reino de Deus à face da Terra e mediadores na transferência da sua luz de oriente para ocidente, direcção cardeal para onde se volta essa que se pode chamar, legitimamente, autêntica Janela do Céu. Aliás, não é aleatória a orientação do edifício, nem tão-pouco a circunstancia de o eixo dele caminhar da Charola, pela sua estrutura intrínseca, síntese da história desde Adão e Eva (os primogénitos isentos de conhecimento ali retratados 16 vezes) e exaltação da Jerusalém histórica, para a igreja manuelina, o Tabernáculo da Nova Aliança. Velando, ou não constituísse ela a vista de Deus, o seu terceiro olho, a sexta Sefira, Tiferet (a Beleza), isto é a Chéquina propriamente dita, é encarnada pela Rosácea, elemento cujo designativo é falante e, formalmente, sugere um vórtice para onde a fecundante espiração do Altíssimo converge compelida pela dupla qualidade divina da Força e da Sabedoria que o Grifo ou Esfinge na sua base, como vigilante dos caminhos da salvação, evoca.
Dante acha-se necessariamente implicado nesta "mostração". A adesão do florentino aos ideais gibelinos serve também de abono ao exercício em curso. Efectivamente, a visão da árvore que reverdece teve-a ele, de acordo com trecho do Purgatório (XXXII, 38, 50, e XXXII, 50-60) da Divina Comédia, a seguir à revelação do rosto da dama sobrenatural (XXXI, l33, l40), a Matrona, Chéquina, ou Rainha dos Anjos (que conduz à árvore da Vida), significativamente comparada ao "esplendor da viva luz eterna", a qual lhe foi mostrada quando via o Grifo que, imutável em si, se transformava na sua imagem reflectida.
Por nunca haver aludido expressamente ao busto sob a árvore Seca, não significa isso que ele desmereça a nossa atenção. Ao invés, a sua presença ali, emanando de uma cordoalha enlaçada e sustentando-se das raízes da árvore murcha do paraíso, só acrescenta verosimilhança a tudo o exposto, porquanto nele se retracta o Novo Adão prognosticado por Esdras, o qual durante três dias aguarda sob uma árvore, ate que uma voz se lhe dirige, proferindo uma frase enigmática: "O mundo está dividido em dez partes e chegou à decima", isto é, atingiu a derradeira Sefira, Malkuth, o Reino, que corresponde aos Tempos Messiânicos.
Apenas convém acrescentar que, na origem, a obra comportava o já referido busto e quatro outras cabeças concebidas para ocuparem posições simétricas duas a duas nas fachadas norte e sul, nesta última. sob as janelas nela delineadas por Diogo de Arruda, coincidindo em qualquer dos casos com os laços da cordoalha que circunda o edifício como para hermeticamente o encerrar e proteger.
Na época, a via exclusiva de acesso ficava sendo o portal sul, concebido por João de Castilho. E mesmo esse não omitia o carácter reservado do recinto, destinado apenas àqueles que o Amor, sugerido pelo Cupido empunhando uma seta na sua mão direita e visível no fecho da arquivolta maior, ferisse para neles suscitar o segundo nascimento ou, na imagética de S. Paulo, o surgimento do Homem Novo a que alude uma fieira de ovos só visível por quem se tenha já internado, leia-se iniciado, no Templo.
Quererá então fazer-se tábua-rasa do tão encarecido simbolismo marítimo manuelino. De forma alguma, porquanto a navegação indubitavelmente constitui o seu cerne, ou não fossem os Cavaleiros de Tomar, à imagem dos Discípulos do Cristo Jesus, pescadores de almas e os seus actos os de novos apóstolos designados por renovado evento pentecostal.
Em consequência, as bóias de cortiça (piecettes) da igreja manuelina de Tomar, sendo flutuadores, são anagogicamente símbolos salvíficos e a cordoalha, remetendo para o apetrecho da faina marítima, não deixa de alegoricamente apelar para a ligadura das três potências da Alma. Contudo, se a corda é símbolo da natureza universalizante, representando a luz ou essência divina. o Amor e a relação com o divino, o laço ou o nó, pressupondo a união das três naturezas manifestadas em todas as coisas criadas por Deus, representa a vinculação ao circuito do espírito mediante voto indissolúvel, o que justamente constitui a via interior mística.

Enquanto Helena olhava para ele com ar embasbacado, António sorria enquanto caminhavam à beira rio

- Olha, acho que o melhor é deixar-mos tudo isto para depois. Vamos, quero apresentar-te uma
pessoa.

Dirigiram-se então para a Torre de Dornes sem repara na misteriosa figura de negro que os
espiava nas sombras.

Isaac, cinturão negro de artes marciais, musico, gestor de redes, mestre budista, engenheiro de sistemas informáticos, sexólogo e chef de "nouvelle cuisine fransaise" especialista em crepes esperava por eles sentado numa tripeça de cortiça.

- Bom dia Helena. Bons olhos te vejam a ti.

- Helena, este é o mestre Isaac, o meu mestre e mentor.

- Muito prazer.

Gaguejou Helena ao reparar no olhar leitoso e vazio do monge.

- O que te traz aqui hoje é algo que transcende todo e qualquer saber mortal Helena, cuidado com as sombras e lembra-te que em 27 uma vem depois da outra e tens de colocar sempre uma à frente.

Então como que por magia Isaac desapareceu envolto numa bola de fumo deixando em seu lugar uma pequena tira de papel verde com a inscrição: IFMFOB TFOIPSB EP UFNQMP F EB DIBWF FN BMNPSBM SFQPVTB B UVB DPSPB, em verdana corpo 12 cor amarelo brum.

Nas sombras do interior da igreja uma figura sinistra ria-se baixinho ajoelhada aos pés da virgem.

2006/10/23

Sentada ao lado de Tó no carro, Helena revia mentalmente toda aquela maluqueira. Um cartomante louco, um computador que só podia ter um vírus estranhíssimo, a "possessão" de Tó e agora uma viagem a Dornes para ver uma torre. Isto não podia estar a acontecer, mas estava.

Chegaram cedo a Tomar, ainda a Corredora não tinha acordado, e depois de uma muito breve visita a casa dos pais de Tó atravessaram a ponte velha em direcção à Igreja de Santa Maria do Olival.

- Sabes Helena é aqui que começa a nossa busca. Em tempos existiu um tunel que ligava esta torre sineira ao convento de Cristo e é nesta igreja que está o tumulo de Gualdim Pais de quem descendo.

O meu antepassado nasceu em 1118 em Amares, no então Condado Portucalense. Amigo de D. Afonso Henriques, é armado cavaleiro por este, após a Batalha de Ourique, contava então apenas vinte e um anos de idade. Pouco depois parte para a Palestina onde se torna Cavaleiro Templario. Regressa cinco anos depois para ajudar na formação da pátria, combatendo como Cavaleiro Templário e edificando castelos e fortalezas.
No ano de 1158 ascende ao mestrado da Ordem em Portugal, conduzindo-a durante décadas tornando-a cada vez mais poderosa, mas sempre em harmonia com o Rei, seu amigo. Faleceu em 1195 e foi aqui sepultado, mas este tumulo encerra um misterio. Está vazio, o corpo de Gualdim desapareceu.
Vamos agora para a praça da Républica, vamos ver a estátua do homem de quem te falo.

Já na praça Tó obrigou Helena a virar-se de costas para a estátua.


- Diz-me o que vês?
- O que vejo? Uma igreja! O que queres tu que eu veja?
- Ali em cima. Aquele baixo-relevo, vês? Rerepresenta um cão que designa a constelação cuja estrela principal é Sirius. Vemos também um leão que lembra a constelação e a sua estrela, Régulos. No centro, um «Graal», deverá ser relacionado com a constelação «a Taça». Estas figuras determinam um ângulo de 34 graus. Ora, a constelação de Leão forma com a Taça e a estrela Sirius do Grande Cão um ângulo de 34 grau, à meia-noite verdadeira, a 20 de Janeiro.
O dia e a hora a que tu nasceste Helena.

Um pouco abalada Helena sentiu as pernas tremer um suor frio precorreu-lhe as costas e se Tó não a amparasse teria caido redonda no chão da praça.

Enquanto tomavam uma àgua no Paraíso, Tó virou-se para Helena e disse:
- Desculpa tudo isto, mas ainda tenho mais duas coisas para te contar, uma fala de um triste dia, o dia 13 de Outubro de 1307 e de uma conspiração que quase acabou com a minha ordem. Nesse dia foi apresentado no tribunal da Inquisição de Paris um objecto, uma grande cabeça feminina de prata dourada que continha no seu interior dois ossos de um crânio muito pequeno envoltos num pano de linho branco e acompanhados por uma filactéria de tecido vermelho cosido onde era legível: Gaput LVIIm.
Nesse mesmo dia em Dornes, Guilherme de Pavia, feitor da Rainha Santa Isabel, perseguia um veado na Serra Vermelha quando ouviu um doloroso choro. Mas por mais que procurasse não conseguia encontrar de onde vinham tais gemidos. Resolveu então ir contar a novidade à Rainha Santa. Para seu espanto, esta não só sabia o motivo da viagem, como o local exacto de onde provinham aqueles gemidos.

Parecem coincidências mas não o são. É por isso que quis que viesses aqui, para poderes ver com os teus próprios olhos.

Terminaram a àgua e partiram imediatamente. A cada curva da sinuosa estrada Helena analizava e tentava por ordem em toda aquela informação, nada fazia sentido e contudo tudo era tão claro.
A torre templária de cinco faces mandada construir por Gualdim Pais junto ao rio Zêzere, avistava-se ao longe, majestosa. Helena sentiu um frio na barriga e uma estranha sensação de "dejá vú".


2006/10/11

- Vamos lá então ver o que escreveu a minha pequena Isabel de Aragão, mas antes aceito uma bebida.
- Estás louco! Nunca mais digas esse nome, não assim! Bolas, parece que não tens nada na cabeça tu! Às vezes, não sei porque é que te escolheram para guardião...
- Pronto pronto desculpa lá. Que nervosinha que estamos hoje. Relaxa um pouco olha que isso faz-te mal.
Já na sala e enquanto Helena preparava umas caipirinhas para ambos, não conseguia deixar de se sentir um tanto ou quanto angustiada, fora um pouco brusca para Tó, fora apenas um gracejo que aos ouvidos de qualquer outro não queria dizer nada, e no entanto para ela e para a marca que trazia consigo queria dizer tanto.
- Bem Tó, desculpa fui um pouco brusca e não queria dizer aquilo, tu és sem sombra de duvida o melhor guardião que o Templo já teve. Nunca em 888 anos houve um como tu.
- Como nós queres tu dizer, ouve Helena, eu sei que é um fardo é por isso que eu acredito no Oculto e nos Mestres. Porque ter-mo-nos encontrado não foi obra do acaso. Mas agora vamos lá ler esse teu best-seller.
Em frente ao monitor o rosto de Helena estava branco e Tó não conseguia acreditar no que estava a ler.
- Não fui eu, juro que não escrevi nada disto, eu nem sei latim, juro...
"Non nobis, Domine, non nobis, sed nomini Tuo da gloriam" brilhava em toda a sua gloria no ecrã do computador.

2006/09/26

Claro que Helena não acreditou em nada daquelas balelas, como é que um livro iria mudar a sua vida?
Mas naquele momento, sentada em frente ao computador a olhar para o ecrã em branco, tudo lhe parecia lógico e coerente. Sempre tivera o sonho de escrever um romance, de se projectar em páginas de vida, arrancar de dentro de si tudo o que sempre quis ser.
Lançou mão à obra e escreveu.

"Nasceu em silencio num dia cinzento, de folhas caídas no chão. Não chorou, e á parteira que lhe assistia o inicio da vida pareceu-lhe que sorria com uns olhos grandes de mulher adulta. Castanhos da cor da terra depois da chuva."

Helena olhou para o ecrã do computador e não pôde deixar de sorrir, enquanto se dirigia para abrir a porta onde alguém impacientemente tocava a campainha.